Quando o silêncio se deixa surpreender.

 

Tinta, grafite, papel. Linha, traçado, traço, contorno. O lápis circula e inscreve no papel texturas sinuosas que se diluem em nuvem, como se atravessassem uma aguada, para rapidamente desaguarem em constelação. Desenhos carregados, onde todas as formas são possíveis, onde vazio justifica o pleno e onde cada desenho detém, como parte assumida de risco, a sua verdade temporária. Assim oscilam num extraordinário movimento, entre o muito controlado e o muito sensível, cartografias povoadas de incertezas, territórios quase invisíveis da botânica e outros mais longínquos da cosmologia.

Conheci a Isabel Correia numa pista de dança. Lugar improvável, um restaurante, que imaginamos voluntariamente aberto a horas irregulares e tardias, com um não sei quê de comum a esses restaurantes americanos na beira da estrada, que todos vimos em filmes ou em fotografias e que fazem parte do nosso imaginário colectivo. Aparentemente uniforme, telhado inclinado, fachadas de vidro, isolado na margem do rio como se ali tivesse encalhado, de onde saía em soluços uma música techno que tinha dificuldade em cobrir o ruído contínuo dos automóveis em grande velocidade na ponte. Isabel, penetrada pelo ritmo da música, dançava, saltava, movia-se num gestual enérgico em todas as direcções aqui mesmo neste sítio à beira da água, onde empurrados pelo Tejo e num derradeiro adeus, os navios imprimiam sulcos cor de carvão, cavados no reflexo prateado da lua cheia na água.

No meio deste alarido e de um diálogo animado, falei-lhe das minhas conversas sobre o tema do silêncio. Desenhar linhas, traçar manchas, marca o nosso modo de estar no mundo. Podemos rabiscar ruídos ou traçar silêncios. Rapidamente Isabel Correia, desenrola o seu pensamento como se desenrolasse os seus desenhos. De imediato pensei na fadiga que nos faz mais atentos, que nos confere uma atenção muito particular e que nos pode orientar o olhar. Nada disso. A sua convicção, é que o abandono é necessário para o desenho surgir. Sem silêncios não há desenho. Convicção que a anima e dita o seu destino. Meu corpo é o desenho, o mundo é o nosso desenho. É preciso coragem para deixar o temporal, é necessário que as brumas matinais se dissipem para estabelecer uma visão clara. O espírito passa, desfila, ilumina, vagabundeia sem nunca se fixar. Impermanência, natureza própria do que é vivo e o princípio da incerteza, são temas de investigação na obra de Isabel Correia,  que orientam a metodologia da sua prática. Comprometer-se com certezas é falhar lamentavelmente, diz ela. Mas para estar neste abandono que a prática do desenho autêntico requer é necessário que a actividade interior do corpo esteja em repouso, é preciso encontrar um caminho de paz interior, um silêncio que não perturbe esse “deixar ir como a vida vai”. Um abandono natural, livre de pensamentos, de automatismos de perfeição, de preocupações das aparências. Abater as fronteiras, entre nós e a vida de todas as coisas.  Trata-se de esquecer tudo, até nos esquecermos de  nós próprios por um tempo. Então, aí começa, entre o exterior e o interior, uma troca sem fim, um ciclo natural de revitalização. Esta consciência é o silêncio activo.

Isabel Correia, que não é estranha nem ao budismo nem à meditação estará certamente de acordo comigo, ao fazer-lhe lembrar as palavras de um sapateiro de uma pequena aldeia na Alemanha do séc. XVII, Jakob Böhme, que dizia - Quando te manténs no repouso do pensamento e da tua vontade própria, então, o ouvido, a vista e a palavra eterna manifestam-se em ti...”

 

 

Maria de Morais Oliveira

Lisboa, 2 Agosto 2014

 

 

 

 

Quand le silence se laisse surprendre.

 

Encre, graphite, papier. Ligne, tracé, trait, contour. Le fusain circule, textures sinueuses creusées dans le blanc du papier, fond en nuage, comme si baigné dans une solution aqueuse et rebondit un peu plus loin en constellation. Dessins chargés, où toutes les formes sont possibles, où les vides se justifient des pleins et où chaque dessin détient, en prise de risque assumée, sa vérité temporaire. Ainsi oscillent, dans un extraordinaire sens du mouvement, entre le très contrôlé et le très sensible, cartographies teintés d’incertitude, des territoires presque invisibles de la botanique et d’autres plus lointains de la Cosmologie.

J’ai fait la connaissance de Isabel Correia sur une piste de danse un soir d’été. Lieu improbable, un restaurant que l’on imagine volontiers ouvert à des heures irrégulières et seulement le soir, avec un je-ne-sais-quoi commun à ces restaurants américains en bord de route, comme ceux qu’on voit dans les films ou en photo, à défaut de les voir en vrai. Apparemment uniforme, toit incliné, façades vitrées, isolé, comme s’il avait échoué sur la marge du fleuve et d’où sortait une sorte de cri lancinant de musique techno qui peinait à couvrir le vrombissement monotone des voitures roulant à grande vitesse sur le pont. Isabel y dansait, sautant et gesticulant énergiquement dans tous les sens, ici même, dans ce lieu au bord de l’eau où dehors, emportés par la rapidité du Tage, les navires laissaient derrière eux un trait noir charbon, creusé dans le reflet argent de la pleine lune dans l’eau.

Au milieu de ce vacarme et d’un dialogue animé je lui fais part de mes conversations ayant comme thème le silence. Dessiner des lignes, des traits ou des tâches, imprime notre façon d’être au monde. On peut griffonner du bruit ou tracer des silences. Très vite Isabel déroule sa pensée comme si elle déroulait ses dessins J’ai tout d’abord songé à la fatigue qui rend attentif, qui confère une attention particulière ou qui peut réorienter le regard. Pas du tout. Pour le dessin, sa conviction, c’est l’abandon pour laisser advenir. Sans silence pas de dessin. Conviction qui l’anime et dicte son destin. Mon corps est le dessin, le monde est notre dessin. Il faut donc avoir le courage de quitter le temporel, que les brumes matinales se dissipent pour rétablir une vision claire. L’esprit passe, défile, illumine, vagabonde sans jamais se fixer. L’impermanence, nature propre du vivant et le principe d’incertitude, sujets de recherche dans l’œuvre de Isabel Correia, orientent la méthodologie de sa pratique. S’engager dans la certitude, s’est échoué lamentablement, dit-elle. Mais pour « être sans le vouloir » que la pratique du dessin authentique demande, il importe que l’activité intérieure soit au repos, il faut un chemin de paix intérieur, un silence qui ne perturbe pas ce « laisser aller comme la vie va ». Un « sans-vouloir » naturel, libéré de la pensée rayonnante, des automatismes de perfection, de la préoccupation des apparences. Abattre les frontières entre le soi et le vivant de toutes choses. Il s’agit bien de tout oublier jusqu’à l’abandon du moi pour un temps. Alors, un échange incessant s’engage, extérieur – intérieur, un cycle naturel de revitalisation. Cette conscience est silence actif.

Isabel Correia, qui puise ses connaissances dans la pratique du bouddhisme et de la méditation ne me contrariera pas, si je lui rappelle quelques paroles d’un maître cordonnier d’un petit village en Allemagne du XVII siècle, Jakob Böhme, qui dit – « Lorsque tu te tiens dans le repos du penser et du vouloir de ton existence propre, alors l’ouïe, la vue, et la parole éternelles se manifestent en toi… »

 

Maria de Morais Oliveira

Lisboa 2 Aout 2014

 

 

 

Projecto Paisagem: Phenomena

 

PHENOMENA é uma natural continuação do projecto ‘Lines All-Ready There’, de 2012, que é composto por uma série de gravuras desenhadas de territórios aéreos reais e irreais. Surge um leque de novas imagens que vão povoar as paisagens de PHENOMENA: Mapas Cosmológicos antigos, imagens do Cosmos, desenhos de botânica e paisagem – onde se cruza o microcosmos do mundo próximo quase invisível e o macro cosmos longínquo quase irreal. O trabalho tem a intenção de investigar a realidade dos fenómenos nas suas 3 qualidades de base: impermanentes, interdependentes, e insubstanciais. Pretende traçar o caminho do meio, no qual os fenómenos “nem são existentes nem não existentes; nem ambos nem nenhum deles” onde “a forma é vacuidade, e a vacuidade é forma”, (“Prajnaparamita- Sutra Coração” ) a matéria é espaço, a aparente substancialidade é insubstancial, a ilusão do definido é indeterminado.

Esta incerteza modela o conteúdo da obra e orienta a metodologia da prática.

Os desenhos desenrolam-se, compõem-se organicamente de linhas, marcas e texturas, sinuosamente elaboradas e de traços gestualmente lavrados no terreno branco da folha de papel. Os desenhos são uma viagem não planeada, são uma escuta em que cada área, cada elemento indica a direção do próximo momento. Há um diálogo contínuo de linhas de ervas, que dão origem a manchas de vento, que se transmutam em constelações de poeiras, fundem-se em modelações aquosas, em texturas vaporosas que incidem em veios de folhas, sedimentações de rochas, que por vezes são brutalmente apagadas e suspensas num vazio de sentido, .... num novo instante, se ramificam vibrações de folhagens no grão do papel. Esta é uma caminhada de matéria e espírito, onde o espaço é o protagonista e as formas potenciam-no.

INTENÇÃO NA PRÁTICA DO DESENHO:

O desenho autêntico acontece quando há uma absorção no momento presente, um interesse no próprio percurso que o desenho vai esboçando á medida que se manifesta, com uma atenção silenciosa à comunicação que se desenrola entre o desenhador e o desenho, sem preocupações no resultado a atingir.

No processo de inscrição, a intenção é abandonar o quanto possível o sentido de autoconsciência composicional, os julgamentos estéticos dos resultados, deixar que a própria realidade guie o traço, saber parar quando a intenção pessoal começa a ganhar terreno e se sobrepõe ao que já está lá.

Este é um caminho de reconhecimento, é uma dança contínua de atenção ao momento presente, sem o alterar, modificar, manipular, de não perder o fio que o liga á realidade, feito de picos, quebras, paragens, destruições, começos e recomeços.

Quando desenhamos, estamos simplesmente a tentar expressar de uma forma simples a nossa experiência ‘tal como ela é’ e na nossa vida quotidiana, ‘Aquilo que é’, é uma obra de arte.

 

Isabel Correia

2014

 

© 2014 Isabel Correia